O que é o movimento Porto Alegre Inquieta – Por Naira Hofmeister

 

Eles não têm CNPJ, se organizam de maneira horizontal, debatem temas que vão da segurança pública à inteligência artificial, misturam ideologias e visões de mundo e se dizem mais interessados nos efeitos de suas ações do que no movimento em si.

Em comum, o que os 2.700 integrantes do Porto Alegre Inquieta têm é que vivem na mesma cidade, acham que a capital do Rio Grande do Sul pode ser um lugar melhor e que a sociedade civil tem um papel central nesse objetivo.

Nascido de uma provocação de Cesar Paz, engenheiro que ficou conhecido por atuar na área de publicidade digital, o grupo começou a se reunir há quase dois anos. Primeiro, com a preocupação de articular empreendedores que movem a chamada “economia criativa” local – um conceito que engloba o que se produz a partir da invenção – moda, design, arte e novas tecnologias.

As conversas geralmente convergiam para discussões sobre a infraestrutura da cidade, o que não contribuía com os propósitos do grupo. Mas ao invés de focar o papo em queixas sobre o poder público, os participantes começaram a pensar como eles poderiam contribuir para transformar Porto Alegre. “Eu posso não saber se a responsabilidade sobre um determinado problema que a cidade tem é da prefeitura ou de outro órgão, mas isso não me exime de participar da solução. A forma de resolver deve incluir o cidadão”, acredita Paz, dando como exemplo mutirões de pais e professores para restaurar escolas públicas. “Nós queremos ser parte de um projeto de evolução, que olhe Porto Alegre daqui a 30 anos”, reivindica.

O resgate dessa cultura cidadã tem a ver com a própria natureza política brasileira, que dificilmente pensa saídas que extrapolem os mandatos de quatro anos. “Mas alguns problemas da cidade são impossíveis de serem solucionados neste tempo. Nós queremos ser parte de um projeto de evolução, que olhe Porto Alegre daqui a 30 anos”, reivindica.

Essa disposição para o diálogo e a ação chamou a atenção do prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB), que encontrou o grupo para um debate frente a frente em outubro, no Plaza São Rafael. O Matinal cobriu o evento.  “Foi ele quem pediu essa reunião. Temos uma interação eventual com o Marchezan através do Pacto Alegre, que reúne academia, poder público e sociedade civil para pensar projetos para a cidade. Ele me mandou uma mensagem dizendo que já tinha ouvido falar muito do coletivo e disse que gostaria de se reunir com a gente”, explicou Paz.

O exemplo de Medellín

A inspiração para tornar esse movimento possível foi Medellín, na Colômbia. A cidade que ele conheceu e estudou durante um mês era totalmente diferente do que o imaginário da maioria pode sugerir: de uma das localidades mais perigosas do mundo, posto que ocupava há duas décadas, a Medellín de hoje é reconhecida mundialmente por ser uma das cidades mais criativas do planeta. Se em 1991, houve 380 assassinatos para cada 100 mil habitantes (20 vezes mais que o registrado no Rio de Janeiro em 2017), em 2015 esse índice baixou para 20 mortes em 100 mil, 94% a menos.

O indicador, entretanto, não foi impactado apenas por políticas heterodoxas de segurança pública. “O maior fator de transformação de Medellín, o processo instrumental mais inspirador foram as rodas de conversa que aconteceram lá durante cinco anos. Eram  discussões envolvendo todas as comunidades baseadas no princípios de olhar a cidade do futuro. Não interessava a ideologia ou se a pessoa havia tido algum tipo de problema com a prefeitura, a ideia era construir. Instrumentalmente, essas conversas têm um efeito muito importante, de gerar confiança e afeto para poder desenvolver projetos e um futuro em comum”, explica.

“Estamos nos referenciando em uma cidade latino-americana, com problemas como os nossos, não em uma cidade europeia”, complementa Paz.

Diversidade de temas e inclusão social

Em Porto Alegre, desde o início de 2018, já ocorreram mais 250 rodas de conversa abordando todos os assuntos possíveis. Há 24 grupos no whatsapp (já foram 33 em outro momento), separados por temáticas como educação, economia criativa, moda inclusiva, sustentabilidade, emprego e trabalho. Na semana que passou, o grupo POA Inquieta Resíduos esteve especialmente movimentado com participações no desafio Creathon DMLU, que reuniu e classificou equipes com as soluções mais inovadoras para reduzir os focos de descarte irregular de lixo na cidade (são 318, atualmente), uma delas formada por “inquietos”.

Já as Mulheres Inquietas deram início à mostra Taturana de Cinema, no Vila Flores, que vai exibir filmes e debater a democracia sob a ótica feminina. “Queremos refletir sobre o protagonismo das mulheres na política, mas também sobre o desenvolvimento de Porto Alegre para mulheres, porque tudo sempre foi pensado por homens, desde a iluminação até as paradas de ônibus”, explica a jornalista Silvia Marcuzzo. Em tempo: as Mulheres Inquietas não são um grupo formal do coletivo (um spin, como eles falam), mas se dividem entre vários dos outros existentes.

Há preocupação com a diversidade, embora a maioria dos integrantes até o momento seja de pessoas brancas e de classe média ou alta. No encontro com o prefeito Marchezan, havia um representante das religiões de matriz africana e uma militante moradora da vila Bom Jesus. “Ainda temos uma representatividade muito baixa, mas sabemos que não é possível encaminhar soluções sem incluir essa parcela da população. Essa aproximação com a cidade invisível é um processo e uma conquista”, acredita Cesar Paz.

Algumas rodas de conversa têm sido deslocadas da região central de Porto Alegre para comunidades da periferia. Muitas delas reduziram seu número de participantes depois da mudança, e alguns líderes sociais já estão se engajando. O grupo POA Inquieta Educação trabalha regularmente em comunidades como Morro da Cruz, Tuca e Alameda. Já o POA Inquieta_Sustentável guiou visitas a espaços modelo em bairros como Restinga e Bom Jesus.

 

Outra iniciativa que busca conectar todo o mapa da cidade é o POA 2020, um projeto que conta com o apoio da Prefeitura de Porto Alegre e cujo objetivo, segundo Paz, é realizar “um grande festival de economia criativa” na cidade em novembro do ano que vem. A inspiração vem de eventos de repercussão mundial como o Fórum Social Mundial e Copa de 2014. “Queremos trazer os principais pensadores do mundo para cá, e vamos ter também atrações culturais, música”, revela.

Dois locais do evento já estão definidos: a Vila Bom Jesus e o Morro da Cruz, e a ideia é lançar um edital público para eleger mais 20 lugares onde serão realizadas as atividades.

Sem CNPJ formal, as ações do Porto Alegre Inquieta são apoiadas por empresas como Sicredi, Banrisul e Sebrae. Agora, eles batalham por um recurso do Banco Mundial para ampliar um projeto desenvolvido na Vila dos Papeleiros, na entrada da cidade, e na região das Ilhas. “Até hoje foi possível ter relevância e impacto sem uma organização formal. Isso nos ajuda a manter a ideia de que é um coletivo, que não precisa ter sede, estrutura, que pode se organizar a partir de modelos mais sistêmicos e funcionar”, conclui Paz.

O ingresso é aberto a todos que queiram participar – há um formulário na página de internet da iniciativa, mas também é possível ingressar nos grupos temáticos de whatsapp ou ficar atento à agenda das rodas de conversa e eventos promovidos por seus integrantes e aos canais oficiais nas redes. “O único pré-requisito é ser inclusivo, aceitar conversar com todo mundo e respeitar quem pensa diferente”, complementa Silvia Marcuzzo.

Naira Hofmeister, especial para o Matinal